quinta-feira, 29 de março de 2012

Entrevista a António Lobo Antunes (escritor): "A morte é uma puta" (Excerto)




"A morte é uma puta e, a uma puta não se pode dar confiança"
Lobo Antunes



DN:Mas não há escapatória para a morte!

ALA:É mais simples do que se pensa. Este ano, tive um problema de saúde e sofri isso na pele, acho que o problema está ultrapassado mas foi um ano duro. E a minha atitude era sobretudo de espanto, e a minha preocupação era ter uma atitude digna e não cobarde. Vi pessoas com uma coragem extraordinária e aprendi com elas lições de vida, coragem e dignidade. As pessoas comportavam-se como príncipes perante a situação e eu pensava estou aqui com pessoas que são melhores do que eu, com uma imensa dignidade no sofrimento. Isso foi uma coisa que me comoveu muito e fez pensar que vale a pena viver entre os homens e com eles. Todo o sofrimento é injusto... Em nome do quê é que uma criança de três anos morre com um cancro ou uma leucemia? É muito injusto, qual a razão disso? Sempre me intrigou a razão deste sofrimento porque o do interior tê-lo-emos sempre. Estamos carregados de dúvidas e certezas e as perguntas que nos fazemos ficam muitas vezes sem resposta. Porque vivo assim, em que falhei e magoamos pessoas sem darmos conta com uma frase que para nós é completamente anódina. Julgo que o segredo é estarmos atentos aos outros mas frequentemente não estamos e, sobretudo, não reparamos que são diferentes de nós. Daí o problema de escrever, como colocar em palavras coisas que por definição são anteriores às palavras? Como tentar cercá-las com palavras? Há zonas em mim que desconheço, portas que nunca abri e que, no entanto, aparecem nos livros e provocam-me uma certa perplexidade ao querer saber de onde é que isto vem, de que profundidades nossas, que todos temos.


DN:Por isso resguarda tanto a vida privada?

ALA:Ela não tem importância nenhuma, só a mim me diz respeito. Quando fui operado escrevi essa crónica sobre o cancro porque já havia tanto jornalista e gente à volta do hospital que resolvi ser eu a dizer: Tenho um cancro no intestino. Não me deu prazer nenhum dizê-lo e garanto que não me deu prazer nenhum tê-lo. O pós-operatório foi horrível e duro, felizmente tive a sorte de ter um grande cirurgião e de todos os que lá trabalhavam serem de uma grande delicadeza. Só tenho gratidão.


DN: Como contrariar a morte?

ALA:Ela corre mais depressa do que qualquer um de nós e a única coisa que posso fazer para contrariar é escrever, a única duração que posso ter é a que os livros tiverem. E aborrece-me que seja assim, é injusto que seja assim, embora haja momentos em que todos nós desejamos morrer, de desânimo e solidão. Há momentos em que quase temos inveja dos mortos porque a vida nem sempre é agradável e fácil mas, agora depois de ver as pessoas lutarem no hospital, senti que muitos pensamentos que tinha eram indignos perante tanta grandeza.


DN:Isso alterou a sua forma de ser?

ALA:Eu agora jogo com as cartas para cima, está tudo à vista porque é a única maneira de viver. Demorei anos a perceber porque o conhecimento da vida chega sempre tarde e pensamos que ocultando conseguimos dar boa imagem aos outros. Agora é: eu sou assim! Peguem, larguem, não posso ser amado pelo mundo inteiro embora a sede de amor seja inextinguível. |


DN:Qual é a sua atitude perante Deus?

ALA:Existe um velho provérbio húngaro que diz que na cova do lobo não há ateus, por isso julgo que não existe quem não acredite. O nada não existe na física ou na biologia e quando se lêem os grandes físicos entende-se como eram homens profundamente crentes, que chegaram a Deus através da física e da matemática e que falavam de Deus de uma maneira fascinante. A minha relação é a de um espírito naturalmente religioso, cada vez mais, não no sentido desta ou daquela igreja mas porque me parece que a ideia de Deus é óbvia. Cada vez mais o é para mim. É um bocado como diz Einstein, quando afirma que Deus não joga aos dados.


DN:Como é essa relação?

ALA:É claro que me zango com Deus porque permite o sofrimento, mas talvez os seus desígnios tenham tais profundezas que não atinjo. O sofrimento sempre me foi incompreensível porque nascemos para a alegria. A minha atitude em relação à religião é essa, não estou a falar de igrejas, estou a falar em relação a Deus e não acredito quando as pessoas dizem que são agnósticas ou ateias. Não estou a dizer que a pessoa não esteja a ser sincera, mas dentro dela e em qualquer ponto há algo... Uma vez perguntaram ao Hemingway se acreditava em Deus e a resposta foi às vezes, à noite.
Então à noite também acredita?
Acredito sempre mas a dúvida e pôr constantemente em questão é próprio da fé. Muitas vezes pergunto-me será que existe? É óbvio que sim.

Um Dia Isto Tinha Que Acontecer




Está à rasca a geração dos pais que educaram os seus meninos numa abastança caprichosa, protegendo-os de dificuldades e escondendo-lhes as agruras da vida.   Está à rasca a geração dos filhos que nunca foram ensinados a lidar com frustrações.   A ironia de tudo isto é que os jovens que agora se dizem (e também estão) à rasca são os que mais tiveram tudo. Nunca nenhuma geração foi, como esta, tão privilegiada na sua infância e na sua adolescência. E nunca a sociedade exigiu tão pouco aos seus jovens como lhes tem sido exigido nos últimos anos. Deslumbradas com a melhoria significativa das condições de vida, a minha geração e as seguintes (actualmente entre os 30 e os 50 anos) vingaram-se das dificuldades em que foram criadas, no antes ou no pós 1974, e quiseram dar aos seus filhos o melhor. Ansiosos por sublimar as suas próprias frustrações, os pais investiram nos seus descendentes: proporcionaram-lhes os estudos que fazem deles a geração mais qualificada de sempre (já lá vamos...), mas também lhes deram uma vida desafogada, mimos e mordomias, entradas nos locais de diversão, cartas de condução e 1.º automóvel, depósitos de combustível cheios, dinheiro no bolso para que nada lhes faltasse. Mesmo quando as expectativas de primeiro emprego saíram goradas, a família continuou presente, a garantir aos filhos cama, mesa e roupa lavada. Durante anos, acreditaram estes pais e estas mães estar a fazer o melhor; o dinheiro ia chegando para comprar (quase) tudo, quantas vezes em substituição de princípios e de uma educação para a qual não havia tempo, já que ele era todo para o trabalho, garante do ordenado com que se compra (quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes. Depois, veio a crise, o aumento do custo de vida, o desemprego, ... A vaquinha emagreceu, feneceu, secou. Foi então que os pais ficaram à rasca. Os pais à rasca não vão a um concerto, mas os seus rebentos enchem Pavilhões Atlânticos e festivais de música e bares e discotecas onde não se entra à borla nem se consome fiado. Os pais à rasca deixaram de ir ao restaurante, para poderem continuar a pagar restaurante aos filhos, num país onde uma festa de aniversário de adolescente que se preza é no restaurante e vedada a pais. São pais que contam os cêntimos para pagar à rasca as contas da água e da luz e do resto, e que abdicam dos seus pequenos prazeres para que os filhos não prescindam da internet de banda larga a alta velocidade, nem dos qualquer coisa phones ou pads, sempre de última geração. São estes pais mesmo à rasca, que já não aguentam, que começam a ter de dizer "não". É um "não" que nunca ensinaram os filhos a ouvir, e que por isso eles não suportam, nem compreendem, porque eles têm direitos, porque eles têm necessidades, porque eles têm expectativas, porque lhes disseram que eles são muito bons e eles querem, e querem, querem o que já ninguém lhes pode dar! A sociedade colhe assim hoje os frutos do que semeou durante pelo menos duas décadas. Eis agora uma geração de pais impotentes e frustrados. Eis agora uma geração jovem altamente qualificada, que andou muito por escolas e universidades mas que estudou pouco e que aprendeu e sabe na proporção do que estudou. Uma geração que colecciona diplomas com que o país lhes alimenta o ego insuflado, mas que são uma ilusão, pois correspondem a pouco conhecimento teórico e a duvidosa capacidade operacional. Eis uma geração que vai a toda a parte, mas que não sabe estar em sítio nenhum. Uma geração que tem acesso a informação sem que isso signifique que é informada; uma geração dotada de trôpegas competências de leitura e interpretação da realidade em que se insere. Eis uma geração habituada a comunicar por abreviaturas e frustrada por não poder abreviar do mesmo modo o caminho para o sucesso. Uma geração que deseja saltar as etapas da ascensão social à mesma velocidade que queimou etapas de crescimento. Uma geração que distingue mal a diferença entre emprego e trabalho, ambicionando mais aquele do que este, num tempo em que nem um nem outro abundam. Eis uma geração que, de repente, se apercebeu que não manda no mundo como mandou nos pais e que agora quer ditar regras à sociedade como as foi ditando à escola, alarvemente e sem maneiras. Eis uma geração tão habituada ao muito e ao supérfluo que o pouco não lhe chega e o acessório se lhe tornou indispensável. Eis uma geração consumista, insaciável e completamente desorientada. Eis uma geração preparadinha para ser arrastada, para servir de montada a quem é exímio na arte de cavalgar demagogicamente sobre o desespero alheio. Há talento e cultura e capacidade e competência e solidariedade e inteligência nesta geração? Claro que há. Conheço uns bons e valentes punhados de exemplos! Os jovens que detêm estas capacidades-características não encaixam no retrato colectivo, pouco se identificam com os seus contemporâneos, e nem são esses que se queixam assim (embora estejam à rasca, como todos nós). Chego a ter a impressão de que, se alguns jovens mais inflamados pudessem, atirariam ao tapete os seus contemporâneos que trabalham bem, os que são empreendedores, os que conseguem bons resultados académicos, porque, que inveja! que chatice!, são betinhos, cromos que só estorvam os outros (como se viu no último Prós e Contras) e, oh, injustiça!, já estão a ser capazes de abarbatar bons ordenados e a subir na vida. E nós, os mais velhos, estaremos em vias de ser caçados à entrada dos nossos locais de trabalho, para deixarmos livres os invejados lugares a que alguns acham ter direito e que pelos vistos - e a acreditar no que ultimamente ouvimos de algumas almas - ocupamos injusta, imerecida e indevidamente?!!! Novos e velhos, todos estamos à rasca. Apesar do tom desta minha prosa, o que eu tenho mesmo é pena destes jovens. Tudo o que atrás escrevi serve apenas para demonstrar a minha firme convicção de que a culpa não é deles. A culpa de tudo isto é nossa, que não soubemos formar nem educar, nem fazer melhor, mas é uma culpa que morre solteira, porque é de todos, e a sociedade não consegue, não quer, não pode assumi-la. Curiosamente, não é desta culpa maior que os jovens agora nos acusam. Haverá mais triste prova do nosso falhanço?

Mia Couto

quarta-feira, 28 de março de 2012

Desespero

Preciso desesperadamente sair deste casulo que me aprisiona os desejos, e me aperta a garganta. Preciso de ar para respirar, ganhar o mundo e sentir novamente o sol a iluminar os meus sonhos.
Do outro lado da porta, olho em frente e vejo passar as mesmas pessoas de sempre, tendo ao fundo as mesmas árvores, a mesma praça e, o mesmo ar singelo como se o mundo não passasse de um relógio.
Penso então comigo mesmo: “preciso sair daqui imediatamente”.
Sento-me no banco daquela mesma praça onde os pássaros já me conhecem de há muito e viajo ao som de pardais, canários e condores. As soluções que busco ansioso, não estão neste mundo. Não suporto mais esta procura inglória. Preciso sair daqui o quanto antes.
À noite, na minha cama, viajo à velocidade da luz pela galáxia visitando planetas, conhecendo seres desconhecidos, sem peso, sem volume nem pudor. Conheço astros e estrelas luminosas, mas também o mais obscuro dos umbrais. O meu coração acelera ao sabor destas experiências imensas, mas ainda desejo mais...Ambiciono sair agora, e já daqui!
Ultrapasso a Via Láctea e, então o nada apresenta-se. Aqui não há esconderijos para procurar Deus, as grandezas evaporam e nada representam. Nem a cor, nem o som, nem os átomos e moléculas, nem as palavras. Desespero e confuso não sei mais o que fazer para sair daqui.
Deus então aparece como o nascer do sol, por detrás da montanha da minha loucura e, pouco a pouco, começa a iluminar a minha mente, e devagar começo a pensar: “sair daqui e ir para onde”?
Com meu mundo iluminado, encontro Deus no meu universo, dentro da minha galáxia, aqui mesmo no meu mundo. Ele canta para mim todos os dias naquelas mesmas árvores da praça. Passa em frente a minha casa e, ao olhar-me do outro lado da porta, cumprimenta-me sorridente.
À noite, dentro daquele casulo de seda, deitado no aconchego de mim mesmo, compreendo como um flash, que não devo sair daqui, pois o que procuro e busco, sempre esteve em mim, compreendo também e definitivamente que, quando tiver que sair daqui, não estarei sozinho para iniciar esta jornada.

N.C

terça-feira, 27 de março de 2012

A Consequência dos Semáforos






"Odeio os semáforos. Em primeiro lugar porque estão sempre vermelhos quando tenho pressa e verdes quando não tenho nenhuma, sem falar do amarelo, que provoca em mim uma indecisão horrível: travo ou acelero? Travo ou acelero?, acelero, depois travo, e ao travar de novo já me entrou uma furgoneta pela porta, já se juntou uma data de gente na esperança de sangue, já um tipo, de chave-inglesa na mão, saiu da furgoneta a chamar-me camelo, já a companhia de seguros me propões calorosamente que a troque por um rival qualquer, já não tenho carro por uma semana, já me ponho na borda do passeio a fazer sinais de náufrago aos táxis, já pago um dinheirão por cada viagem e, ainda por cima, tenho de aturar o pirilampo mágico e a Nossa Senhora do Alumínio do «tablier», o espelho de plástico pendurado do retrovisor, o autocolante da menina, de cabelos compridos e chapéu, ao lado do aviso «Não fume que sou asmático», proximidade que me leva a supor que os problemas respiratórios se acentuaram devido a alguma perfídia secreta da menina que não consigo perceber qual seja.
A Segunda e principal razão que me leva a odiar os semáforos é porque, de cada vez que paro, me surgem, no vidro da janela, criaturas inverosímeis: vendedores de jornais, vendedores de pensos rápidos, as senhoras vistosas, com uma caixa de metal ao peito, que nos colam autoritariamente, sobre o coração, o caranguejo do cancro, os matulões da Liga do Cegos João de deus, nas vizinhanças de um antifalante sobre uma camioneta com um espadalhão novo em folha em cima, o sujeito digno, a quem roubaram a carteira e que precisa de dinheiro para o comboio do Porto, o tuberculoso com o seu atestado comprovativo, toda a casta de aleijões (microcefálicos, macrocefálicos, coxos, marrecas, estrábicos divergentes e convergentes, bócios, braços mirrados, mãos com seis dedos, mãos sem dedo nenhum, mongolóides, dirigentes de partidos políticos, etc.), sem contar o grupo de Bombeiros Voluntários que necessita de uma ambulância, os novos finalistas de Coimbra, de capa e batina, que decidiram fazer uma viagem de fim de curso à Birmânia, e a rapaziada da heroína que não conseguiu roubar nenhum leitor de cassetes nesse dia.
Resultado: no primeiro semáforo já não tenho trocos. No segundo já não tenho casaco. No terceiro não tenho sapatos. No quinto estou nu. No sexto dei o Volkswagen. No sétimo aguardo que a luz passe a encarnado para assaltar por meu turno, de mistura com uma multidão de bombeiros, de estudantes, de drogados e de microcefálicos, o primeiro automóvel que aparece. Em média, mudo cinco vezes de vestimenta e de carro até chegar ao meu destino, e quando chego, ao volante de um camião TIR, a dançar numas calças enormes, os meus amigos queixam-se de eu não ser pontual."

António Lobo Antunes

segunda-feira, 26 de março de 2012

O Aprendiz


Existe um povo que se rege por um lema de vida tão simples quanto isto - “ Se os teus problemas têm solução, encontra-as e resolve-os. Caso contrário, não te desgastes em vão” -.
Por vezes o que nos parece de impossível resolução, será sempre possível ás mãos de DEUS. 
O povo tibetano deveria ter acrescentado este pequeno trecho, a uma frase de conteúdo imenso… Preocupei-me demais com a luxúria, despesas supérfluas,  e outras coisas banais, até que um dia ao falar com o espelho não me reconheci.  
Encontro-me ainda na infinita aprendizagem em atribuir o merecido valor a pequenas grandes coisas… Como o cheiro puro de uma flor… Como o odor inconfundível do teu corpo… Dos nossos corpos…Quando se unem, e se transfiguram inseparáveis...

Nuno C.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Outros Mares


Invado um mar de cores vagas
Avisto ao longe ondas iradas
Um desconhecido na imensidão
Ausentou-se a ira, brotou paixão

No azul do céu, melodias colho
Cânticos de preces fluidas
Brisas macias me embalam
Vagas suaves me enrolam


Sonhos…

N.C